Quarta-feira, 18 de Agosto de 2004
Foi ontem à noite e já tenho saudades vossas. Foi ontem à noite a nossa reunião, ao fim de trinta anos sem nos vermos, sem sabermos nada umas das outras. Colegas de colégio, meninas de bibe e laçarotes no cabelo, olhos cor de sonhos e sorrisos com sabor a pastilhas elásticas de morango.
Tínhamos 10 anos e tremíamos nos vestidinhos brancos e nos sapatos de verniz do exame da quarta classe. Passámos todas com distinção. Glória e Orgulho do Colégio! Dissemos adeus, como se fossemos para mais umas férias grandes. Como se nos voltássemos a ver daqui a 3 longos meses de praias cheias de infância.
Voltámos a ver-nos, sim. Passados trinta anos, depois das férias. Porque uma de nós se lembrou que era giro fazer um jantar para nos reunirmos. Conseguiu juntar todas. (menos uma.. já no colégio ela era a que ficava sempre no canto do recreio
puta de vida, que será feito da F?)
Um grupo de mulheres num restaurante. Tu és a J. Só podes! E tu quem és? A C? Estás linda! L. tás nas mesma! Tamos nada na mesma, mas trouxemos fotos.. Somos mesmo aquelas meninas da idade das nossas filhas? Somos! Graças a deus que há lideres nos grupos. A líder natural, M.J, continuas a maior, impõe lá a ordem na conversa. Cada uma conta à vez o que fez durante este trinta anos. Anuímos, ordeiras, durante uns 10 minutos. Depois foi o delírio. Um grupo de mulheres à beira de um peixe caro grelhado cheio de verduras sofisticadas e de uns escalopes parvamente enfeitados com cogumelos, cada uma contando em duas horas de jantar o que fez em trinta anos de vida
Maridos, todas.. (em número diverso, um, dois e um record, três
Ena, C. também eras a mais bonita e a mais caladinha da turma
) Filhos, claro, todas
sorrisos rasgados, fotografias de crianças e adolescentes lindos, são um espectáculo. Liceu, todas, óbvio, uma passagem, licenciaturas de sucesso, carreiras em flecha. Profissão de Topo, Carreira Universitária, Percurso Político, Viagens, o Mundo, todas tivemos tudo.
Glória e Orgulho do Colégio. Claro que bebemos vinho ao jantar. Podia ser o mais caro da lista. Era uma noite especial. Umas beberam mais, outras estranharam tanto vinho na mesa
Falámos do colégio. Lembram-se da professora? Lembram-se das reguadas? Lembram-se dos Natais? Lembram-se das fitas de bom comportamento? Lembram-se dos rapazes do recreio do lado? (que será feito deles?) Lembram-se do ódio de sermos pequenas e termos grades no recreio? Lembram-se como nos amávamos e como queríamos ser grandes para voar para bem longe dos livros obrigatórios de textos idiotas, e dos retratos dos ditadores nas paredes e no crucifixo por cima da nossa alegria? Lembrávamo-nos todas.
Muitos filmes diferentes. Cada uma com a sua recordação, cada uma com a sua verdade do colégio, cada uma com o seu sonho de vida por cumprir.
Jantar de sucesso. Que bom estamos todas tão bem na vida
.Que bom, tanto que fizemos, tanto que conseguimos. (menos uma.. já no colégio ela era a que ficava sempre no canto do recreio
puta de vida, que será feito da F?)
Tivemos de sair do restaurante. Um grupo de mulheres maduras à beira de um jantar num restaurante caro
.Uma conta astronómica. Será que não faz diferença? Nem todas tinham malas vuiton, nem cartões dourados e brilhantes, nem anéis do joalheiro da moda, mas quem repara nessas coisas? Desculpem se eu reparo, mas eu vivo num chapitô, à beira da minha janela. Eu reparo nas cores dos olhares
Não nos podíamos separar assim
Um bar da moda, para acabar a noite.
Final test. Água das pedras
pouca, muito água tónica com gin, muito limão com vodka. Libertamo-nos no fundo de um copo doce. No fundo de vários copos doces...
Uma luz mais suave. Um encontro mais sussurrado. O gin e a vodka, deuses da noite trazem-me as minhas amigas. Agora já não há risos pintados em maquilhagens cuidadas, nem fotos a cores. Agora a noite é meiga. Agora há murmúrios a duas, feitos de laços que se entrelaçam no olhar.
Eu e vocês.
- Aguento isto há anos, sabes? Ele tem outra. Eu até a conheço. É simpática. Faço de conta que nem sei. Já me cansei de fazer cenas de ciúmes. Ele até já saiu de casa, mas voltou
Eu aceitei-o de volta. Acho que agora tem essa e outras. Suponho que sejam todas simpáticas e giras. Espero que ele tenha bom gosto. É o pai dos meus filhos, porra! Agora, sempre que me dá na bolha e na tristeza profunda, que ningém percebe, vou para um SPA no Algarve e fico lá a gastar o dinheiro dele. Ele até fica feliz de gastar o dinheiro comigo. Atenua-lhe a culpa. E ele ama os filhos que lhe dei. Eu nunca lhe tiraria os filhos, entendes?
- Ele era o amor da minha vida. Fez uma falcatrua e pirou-se para o Brasil. Fiquei com o puto, sozinha, cheia de dívidas. Que querias que eu fizesse? O meu ordenado não dava. Porra, este gajo ajuda-me, é meu amigo e é uma espécie de pai para o meu puto. Eu sei que ele é casado, mas eu não o chateio. Respeito a família dele. E sei que ele é feliz quando está comigo. Tenho pouco tempo com ele, mas é de qualidade. Juro-te, não vou fazer mal à família dele. Nunca! Entendes?
- Casei por amor. Aos vinte anos. Fui tudo o que me ensinaram. Carreira de sucesso, esposa maravilhosa, mãe extremosa. Um dia, percebi que era transparente. Ele nem me tocava mais
Nem dormia comigo. Era a mãe dele, entendes? Ele precisava de mim como eu preciso da minha empregada. Eu estava morta por dentro. Eu estava tão morta
Apareceu um amigo especial. Fez-me sentir que eu era bonita, que eu ainda era mulher. Fui para a cama com ele. Depois, foi a culpa
A infidelidade é um pecado, sabias? Ensinaram-me isso na catequese. Sofri demais a divisão entre o que me ensinaram e o desejo de poder se amada de novo, Entendes?
Entendo. Entendo-vos a todas tão bem, como me estranho a mim própria, vivendo neste chapitô, à beira da minha janela, à beira do meu abismo feito de lágrimas de nunca ter partido com uma das companhias de circo que me acenaram de longe das suas caravanas.
Escrevo-vos hoje esta carta, minhas amigas de tranças e laçarotes e pastilhas elásticas a sabor a morango. Porque ontem estivemos juntas. Porque ontem nos desnudámos. E porque só nos veremos outra vez daqui a outros trinta anos. (menos uma.. já no colégio ela era a que ficava sempre no canto do recreio
puta de vida, que será feito da F?)
Até sempre.
M.
De
Carla a 19 de Agosto de 2004 às 23:04
Não sei porquê... tens o condão de me deixar soltar as lágrimas... Uma alegria efusiva do reencontro, todas maravilhosas e bem sucedidas e depois, com o passar da noite, deu-se voz ao desencanto... que passa sempre pelo amor... Espero que daqui a 30 anos as histórias sejam bem mais bonitas... Até imagino um final bem merecido para cada uma. Beijo grande.
De
Dora a 19 de Agosto de 2004 às 11:42
Lolita, esta carta é tão cheia de nós todas....das meninas que fomos, das mulheres que somos. Das sombras interiores que escondemos com baton e eye-liner e que revelamos às "irmãs" em noites de lágrimas e sorrisos. Bem vinda :-)
De floreca a 19 de Agosto de 2004 às 10:50
Lolita, "reconheci" algumas pessoas que conheço, no teu texto. Uma delas foi, sem dúvida, a F.
De atuaLolita a 19 de Agosto de 2004 às 10:40
Floreca e Veneno. Curioso como a F. foi a vossa preferida. Não fossem vocês duas joias de pessoas...E não fosse o veneno o paladino das causas por que valem a pena lutar. Beijos aos dois :-)
De atuaLolita a 19 de Agosto de 2004 às 10:38
António, obrigada. Vamos matando as saudades devagarinho... beijos
De veneno a 19 de Agosto de 2004 às 09:32
Vou procurar a F. Da próxima deixo-ta à porta do restaurante, nem que leve trinta anos a dar com a miúda :) Beijo ainda fresco como esta manhã de sol.
De floreca a 19 de Agosto de 2004 às 02:25
Talvez a F. tenha aprendido a gostar dela própria... e agora já não fique sozinha num canto.
De Antonio a 19 de Agosto de 2004 às 02:00
Ler-te, Lolita, é como saborear com calma o nosso prato favorito, como beber um copo do vinho que achamos fantástico! Pena e vontade de repetir é o que sentimos quando termina um destes prazeres. Tinha saudade de te ler, já sinto saudade de saborear as tuas palavras!
De atuaLolita a 19 de Agosto de 2004 às 00:01
Não sei Fly. Quem me dera saber onde está a F. Quem sabe ela é feliz. Quem sabe....
De Fly_away a 18 de Agosto de 2004 às 23:56
Imagino o quanto doeu escrever isto. Cada uma das tuas palavras tem um quê de cada mulher que existe no mundo. Menos uma, a que ficava sempre num canto, no recreio: que será feito da F?
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