Sexta-feira, 20 de Agosto de 2004

Que será feito da F?...





Queridas colegas,



Recebi a carta da M.

Não sei se me reconhecem, já passaram 30 anos...

Sou a F.



A vida passa num piscar de olhos, de facto. A nossa idade dá-nos agora o privilégio de poder olhar para trás e perguntar se fomos felizes. Normalmente tentamos confrontar essa felicidade com aqueles que nos rodeiam e partiram de patamares idênticos ao nosso. Assim, podemos sentir se... valeu a pena o "canto" que escolhemos. Perguntamo-nos se as nossas prioridades eram aquelas e não outras quaisquer. Questionamos se fizemos bem ou mal, se errámos ou acertámos, se tivemos sucesso ou fracasso.... Se não estamos arrependidos. Se ainda há tempo de voltar atrás.... e rectificar alguns pormenores desta pintura que iniciámos e cujas cores raramente podemos corrigir.

Inevitavelmente, comparamo-nos com os demais e pensamos: "que infeliz fui...!"

Mas, quando nos comparamos com outros, pensamos: "sim, fui feliz, sim".

Temos de ter sempre um ponto de referência e esquecemo-nos quase sempre de nos compararmos connosco. Devíamos pensar se fomos, ou somos felizes, de acordo com os nossos ... como se diz em português?... accomplishments.



Desculpem, passei muitos anos fora de Portugal, falta-me algum vocabulário. Regressei há 1 ano. Lembram-se como eu parecia infeliz quando andávamos na escola?... Lembram-se como a professora me batia?... Eu nunca sabia a tabuada. E as minhas cópias?! Eram uma nódoa. Odiava a escola.... Tinha medo de tudo e de todos. Parecia-me que o mundo era tão agressivo nessa altura! Chamavam burras às crianças que não aprendiam; não se dizia, como hoje, que essas crianças tinham dificuldades de aprendizagem.



Sempre enfiada comigo mesma, não atraía ninguém, nem chamava ninguém para brincar. Sempre fui muito apagada. Durante o recreio ficava sentada num cantinho a comer o pão com marmelada que trazia numa cesta, e a admirar-vos lá de longe: vocês eram todas lindas e a Lolita era o centro das atenções, a líder do grupo das meninas. Às vezes ela era também mimada. Não deixava que ninguém brilhasse mais do que ela e tinha grandes zangas com a J. Mudaram muito, todas vocês. Sobretudo a Lolita, não parece a mesma menina de tranças que troçava dos rapazes e os desafiava....!



Um dia aconteceu uma coisa fantástica, e esse dia mudou a minha vida. Apareceu uma senhora na escola... como se chamava?... Professora Isabel, era isso... ela era muito meiga, disse-me que queria falar comigo e fomos para uma salinha junto ao refeitório. Ela primeiro falou comigo e perguntou-me porque é que eu e o "mundo" não jogámos as mesmas regras.... Eu não sabia. Depois ela pegou num papeis com muitos números e .... a partir daí, nunca mais parei de ir ao médico. Fizeram-me testes para saber quem eram as pessoas que eu via e sentia, qual o fruto da imaginação que as produzia... E como é que eu sabia tantas coisas... Os meus pais quiseram castrar-me para eu ser igual às outras crianças mas.... eu via com os olhos da alma, e compreendia. Nesse entretanto, mudámo-nos para Trieste, na Itália, tinha.....uns ... 17 anos... e foi por isso que vocês todas perderam o meu rasto.



Continuei os meus estudos lá, sempre enfiada num canto. Trieste é uma cidade cinzenta mas evoluída, faz muito frio no Inverno e um sopra um vento que nos gela os ossos...

Com 30 anos tinha feito a universidade e o doutoramento. Escrevi alguns livros. Dirigi uma investigação sobre crianças sobre-dotadas. Há muitas crianças assim.... elas estão sempre enfiadas num canto porque o isolamento é a única linguagem que as compreende quando mais ninguém lhes dá atenção; são pessoas inseguras, infelizes, sentem-se anormais quando não existem instituições que as acolham.

Não casei nem tive filhos, sempre fui muito apagada para atrair um homem. Vocês não se lembram como eu era feia?



Amigas, a vida nunca é o que esperamos dela. A questão é que nascemos imbuídos de sonhos e os sonhos que não podemos... accomplish... quer dizer, realizar, transformam-se em fantasmas que nos perseguem. Entendem?.... Porque o ser humano é dotado de uma aptidão natural para sonhar, muito maior do que a sua capacidade para realizar. Sonhamos mais alto, mais rápido e com mais profundidade do que as nossas próprias forças...



Ao percorrer a praia, estava no outro dia a pensar nisso: como eu gostaria de ter sido como vocês todas: brilhantes, sucedidas.... o centro das atenções do mundo. Ao contrário, sempre apagada, infeliz, incompreendida, insegura e gozada mesmo pelas outras crianças, vivi a minha vida à procura de respostas que não existiam. Sabem porquê?.... Porque as minhas perguntas não existiam no mundo em que eu vivia.



As coisas são muito mais como são.... E há muito mais para lá do que podemos ver. As nossas oportunidades são sempre muito mais vastas do que pensamos. Só temos de.... fechar os olhos por instantes e respirar muito profundamente, até ao mais fundo de nós, para percebermos que a Vida é, na verdade, um fluido com muitos accomplishments.... e muitas oportunidades...



Reparem: quando uma borboleta bate as asas na Austrália, o seu bater de asas repercute-se num outro ponto do planeta... Entendem? Tão poucas pessoas me entendem... Talvez vocês, quem sabe...!



Por isso, sejam felizes..... Porque a vossa felicidade deve ter um efeito positivo em qualquer um outro lugar...

Não olhem para o lado, olhem pra dentro de vocês mesmas.



Lolita, para terminar queria só dizer que gostava muito das tuas tranças, porque é que nunca te disse?



Como a vida passa..... é um piscar d' olhos.

Até sempre,

F.












































publicado por floreca às 23:18
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15 comentários:
De atuaLolita a 21 de Agosto de 2004 às 00:20
Prefiro pensar que nós passamos pela vida, em vez de ser ela que passa por nós. Linda a tua carta. Merece resposta na volta do correio. Um sorriso em forma de flor para ti :-)


De Fly_away a 21 de Agosto de 2004 às 00:19
Floreca, como é que uma criança pode gostar dela própria, se não comprende o mundo que a rodeia?.... E depois, a vida passa e é dificil começar a gostar.


De Fly_away a 21 de Agosto de 2004 às 00:17
Vês, Lolita?.... Aquilo que se aprende enquanto a vida passa, num piscar d'olhos! Beijinhos para ti.


De atuaLolita a 21 de Agosto de 2004 às 00:15
Nunca disseste que não gostavas das minhas tranças, porque eu não sabia nada sobre as tristezas alheias. Porque só passados muitos anos eu percebi que uma borboleta na Austrália faz eco na minha vida. Porque só há meia dúzia de dias... enviei uma mensagem para um amigo, que vive do outro lado do mundo, em que lhe contava das minhas solidões e recebi em resposta algo que um dia destes vos contarei.. dizia apenas isto "Tu és um Universo".


De floreca a 20 de Agosto de 2004 às 23:56
A F., que se calhar é uma mulher com mais sucesso que as outras, continua "sozinha no recreio". Continua a ser uma mulher triste e que se acha "apagada". Ainda não aprendeu a gostar dela própria... Está uma carta muito bonita, Fly:-)


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