Queridas colegas,
Recebi a carta da M.
Não sei se me reconhecem, já passaram 30 anos...
Sou a F.
A vida passa num piscar de olhos, de facto. A nossa idade dá-nos agora o privilégio de poder olhar para trás e perguntar se fomos felizes. Normalmente tentamos confrontar essa felicidade com aqueles que nos rodeiam e partiram de patamares idênticos ao nosso. Assim, podemos sentir se... valeu a pena o "canto" que escolhemos. Perguntamo-nos se as nossas prioridades eram aquelas e não outras quaisquer. Questionamos se fizemos bem ou mal, se errámos ou acertámos, se tivemos sucesso ou fracasso.... Se não estamos arrependidos. Se ainda há tempo de voltar atrás.... e rectificar alguns pormenores desta pintura que iniciámos e cujas cores raramente podemos corrigir.
Inevitavelmente, comparamo-nos com os demais e pensamos: "que infeliz fui...!"
Mas, quando nos comparamos com outros, pensamos: "sim, fui feliz, sim".
Temos de ter sempre um ponto de referência e esquecemo-nos quase sempre de nos compararmos connosco. Devíamos pensar se fomos, ou somos felizes, de acordo com os nossos ... como se diz em português?... accomplishments.
Desculpem, passei muitos anos fora de Portugal, falta-me algum vocabulário. Regressei há 1 ano. Lembram-se como eu parecia infeliz quando andávamos na escola?... Lembram-se como a professora me batia?... Eu nunca sabia a tabuada. E as minhas cópias?! Eram uma nódoa. Odiava a escola.... Tinha medo de tudo e de todos. Parecia-me que o mundo era tão agressivo nessa altura! Chamavam burras às crianças que não aprendiam; não se dizia, como hoje, que essas crianças tinham dificuldades de aprendizagem.
Sempre enfiada comigo mesma, não atraía ninguém, nem chamava ninguém para brincar. Sempre fui muito apagada. Durante o recreio ficava sentada num cantinho a comer o pão com marmelada que trazia numa cesta, e a admirar-vos lá de longe: vocês eram todas lindas e a Lolita era o centro das atenções, a líder do grupo das meninas. Às vezes ela era também mimada. Não deixava que ninguém brilhasse mais do que ela e tinha grandes zangas com a J. Mudaram muito, todas vocês. Sobretudo a Lolita, não parece a mesma menina de tranças que troçava dos rapazes e os desafiava....!
Um dia aconteceu uma coisa fantástica, e esse dia mudou a minha vida. Apareceu uma senhora na escola... como se chamava?... Professora Isabel, era isso... ela era muito meiga, disse-me que queria falar comigo e fomos para uma salinha junto ao refeitório. Ela primeiro falou comigo e perguntou-me porque é que eu e o "mundo" não jogámos as mesmas regras.... Eu não sabia. Depois ela pegou num papeis com muitos números e .... a partir daí, nunca mais parei de ir ao médico. Fizeram-me testes para saber quem eram as pessoas que eu via e sentia, qual o fruto da imaginação que as produzia... E como é que eu sabia tantas coisas... Os meus pais quiseram castrar-me para eu ser igual às outras crianças mas.... eu via com os olhos da alma, e compreendia. Nesse entretanto, mudámo-nos para Trieste, na Itália, tinha.....uns ... 17 anos... e foi por isso que vocês todas perderam o meu rasto.
Continuei os meus estudos lá, sempre enfiada num canto. Trieste é uma cidade cinzenta mas evoluída, faz muito frio no Inverno e um sopra um vento que nos gela os ossos...
Com 30 anos tinha feito a universidade e o doutoramento. Escrevi alguns livros. Dirigi uma investigação sobre crianças sobre-dotadas. Há muitas crianças assim.... elas estão sempre enfiadas num canto porque o isolamento é a única linguagem que as compreende quando mais ninguém lhes dá atenção; são pessoas inseguras, infelizes, sentem-se anormais quando não existem instituições que as acolham.
Não casei nem tive filhos, sempre fui muito apagada para atrair um homem. Vocês não se lembram como eu era feia?
Amigas, a vida nunca é o que esperamos dela. A questão é que nascemos imbuídos de sonhos e os sonhos que não podemos... accomplish... quer dizer, realizar, transformam-se em fantasmas que nos perseguem. Entendem?.... Porque o ser humano é dotado de uma aptidão natural para sonhar, muito maior do que a sua capacidade para realizar. Sonhamos mais alto, mais rápido e com mais profundidade do que as nossas próprias forças...
Ao percorrer a praia, estava no outro dia a pensar nisso: como eu gostaria de ter sido como vocês todas: brilhantes, sucedidas.... o centro das atenções do mundo. Ao contrário, sempre apagada, infeliz, incompreendida, insegura e gozada mesmo pelas outras crianças, vivi a minha vida à procura de respostas que não existiam. Sabem porquê?.... Porque as minhas perguntas não existiam no mundo em que eu vivia.
As coisas são muito mais como são.... E há muito mais para lá do que podemos ver. As nossas oportunidades são sempre muito mais vastas do que pensamos. Só temos de.... fechar os olhos por instantes e respirar muito profundamente, até ao mais fundo de nós, para percebermos que a Vida é, na verdade, um fluido com muitos accomplishments.... e muitas oportunidades...
Reparem:
quando uma borboleta bate as asas na Austrália, o seu bater de asas repercute-se num outro ponto do planeta... Entendem? Tão poucas pessoas me entendem... Talvez vocês, quem sabe...!
Por isso, sejam felizes..... Porque a vossa felicidade deve ter um efeito positivo em qualquer um outro lugar...
Não olhem para o lado, olhem pra dentro de vocês mesmas.
Lolita, para terminar queria só dizer que gostava muito das tuas tranças, porque é que nunca te disse?
Como a vida passa..... é um piscar d' olhos.
Até sempre,
F.

De
Carla a 25 de Agosto de 2004 às 08:11
Está linda... E enquanto existir voz e papel, estamos sempre a tempo de saber que um dia gostaram das nossas tranças. Que bem-quereres de ti não andarão guardados por esse mundo fora, despontando de vez em quando e tornando ainda mais mágicas as tuas memórias? Beijo grande.
De
Dora a 22 de Agosto de 2004 às 01:56
Fly-away, que carta bonita, tecida a lágrimas e gestos de carinho...Para além de tudo o q já foi aqui debatido, gostaria de sublinhar um axioma muito verdadeiro "A nossa capacidade de sonhar é muito maior que a nossa capacidade de realizar". Uma outra forma de dizermos que "Nós não somos (só) o que fazemos". Um beijinho :-)
De Fly_away a 22 de Agosto de 2004 às 01:06
Helena, obrigada por teres passado. Comenta sempre as primeiras palavras que te vierem ao pensamento. A espontaneidade é uma virtude fantastica e aqui não há censuras! Bjs.
De
Helena a 21 de Agosto de 2004 às 16:54
eu gostava de saber comentários os teus textos. Mas gosto de vi aqui lê-los, às vezes imprimo um ou outro, porque gosto muito, mas nunca sei muito bem que comentários fazer... que palavras pôr a estes sentimentos. :)
De Fly_away a 21 de Agosto de 2004 às 00:53
O insucesso escolar e a ausência de apoios em Portugal para sobredotados é que eu penso que devia ser uma preocupção mais premente, junto dos educadores e indutores de aprendizagens. Ajudava imenso na adaptação dos jovens com esse problema. Quanto às pérolas, cada um sabe o colar que usa. Tomara que esta carta seja pelo menos um esgar de sorriso nos olhos das/dos F's que a lerem. Beijos. Entretanto, mando daqui uma boa noite para os que não me ouvem nem vêm na australia. :)
De atuaLolita a 21 de Agosto de 2004 às 00:42
Ok. Agora mais á séria. Ninguém ensina. Não há ensino. Apenas aprendizagem. As pessoas aprendem o que precisam. Existem pessoas que são condutoras das aprendizagens alheias. Essas pessoas são privilegiadas. Essa é uma das pérolas que uso no meu colar. :-)
De floreca a 21 de Agosto de 2004 às 00:33
Lolita, não o quis tornar triste, porra!!! Apenas mostrar que podemos mudar com a idade, para bem ou para mal! E sabes? Eu guardo os momentos de felicidade muito bem guardados e são eles que me fazem ter sempre um sorriso nos lábios:-)
De floreca a 21 de Agosto de 2004 às 00:31
Quanto às crianças sobredotadas, vivi muitos anos ao lado de uma. Já na 1ª classe faltava às aulas, para ir apanhar gafanhotos... a professora nunca teve nada para lhe ensinar! Teve uma adolescência extremamente infeliz e complicada, sem rumo... até um dia, em que descobriu algo que o fazia feliz e se agarrou com unhas e dentes. Hoje é um homem de sucesso, feliz, amigo... como nunca imaginei que um dia se tornasse. Ser sobredotado é muito complicado! Só quem vive esta realidade o percebe...
De atuaLolita a 21 de Agosto de 2004 às 00:29
Isto está demasiado sério agora. Floreca, posso dizer um porra? Posso, porra que este blogue também é meu, olha que porra. As vidas vazias... são tantas, mas tantas como os grãos de areia. A felicidade é o objectivo da vida do ser humano. Quantos momentos felizes cada um de nós já teve na vida? Se cada momento feliz que cada um de nós tiver tido, fosse uma pérola, podíamos fazer um colar?
De floreca a 21 de Agosto de 2004 às 00:24
Não, Fly, não é difícil. Em criança, talvez, mas ao crescer torna-se diferente. Acredita que há meninas que brincavam sozinhas e que aprenderam a gostar delas e se tornaram umas mulheres de sucesso (não apenas aparente). E algumas das meninas alegres do recreio são agora mulheres com vidas vazias...
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