Segunda-feira, 31 de Maio de 2004

Carta ao J.J., menino dos olhos azuis

Lembrei-me de te escrever porque há anos que não sei nada de ti. Surgiste de repente, vindo das minhas memórias de infância. Andávamos nos primeiros anos do liceu, eu era uma menina de classe média, tu não podias negar as tuas origens na gente do campo de uma aldeia ali perto. Eu já era uma garotinha em flor, com promessas de mulher nos botões dos seios. Tu eras um rapazinho franzino, uma criança de grandes, enormes olhos azuis. Aquele era o único liceu em muitos quilómetros à volta e quem queria fazer qualquer coisa mais que a primária, ia de comboio para a vila (agora uma cidade grande) logo de manhãzinha e voltava ao fim da tarde. Ambos tínhamos aquela viagem diária para aldeias diferentes.
No meio das brincadeiras de rapariguinhas a quererem ser mulheres, os teus olhos azuis tocaram-me bem fundo. Foste o meu primeiro amor, aquele para quem escrevi o meu primeiro diário em folhas de papel de rascunho. Ainda recordo o meu desassossego nas aulas quando faltavas. Olhava ansiosa a porta da aula e o teu lugar vazio. Sabia que às vezes tinhas que ficar a ajudar os teus pais, no campo. Aquilo não me parecia justo. Como podia eu entender?
Escreveste-me um bilhete um dia que me foi entregue por uma amiga. Dizia só : “Queres namorar comigo?”. Quando li, olhei-te e sorri. Não foi preciso responder. A partir daí, namorámos. Tu esperavas o meu comboio e vinhas comigo da estação, sem dizer nada, ousando por vezes tocar a minha mão. À tarde, fazíamos o caminho de regresso juntos, quase sempre calados. O meu comboio partia antes do teu. Sentava-me ao pé da janela e os meus olhos prendiam-se na água azul dos teus até ao andar do comboio cortar esse fio invisível.
Foi assim durante dois anos. Depois crescemos ambos e tu começaste a distanciar-te da rapariga tão diferente de ti, a falar de cinema e de livros, a melhor aluna da classe. Também tu querias alguém possível a quem amar. Só entendi isto muito depois. Na altura, chorei como criança e iniciei o sofrimento das mulheres pelos amores perdidos. Ainda hoje, nas gares dos comboios, procuro, sem encontrar, uns olhos azuis iguais aos teus.
publicado por floreca às 10:21
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De almar a 1 de Junho de 2004 às 08:36
ognid: right! Este comboio chegava exactamente a portos (assim, no plural...) Beijinhos


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