Quarta-feira, 23 de Junho de 2004

Carta ao Amanhã

Meu caro Amanhã, como vais? Ou deverei dizer, quando vens? Ou ainda, virás?
Perdoa-me. Não pretendo ensombrar desde logo uma carta que pretende ser de bonança, mas tens de admitir, meu caro amigo desconhecido, que, depois de leres o que tenho para te dizer, todas estas questões se tornam válidas e pertinentes.
Escrevo para te contar do Ontem. Lembras-te dele? Sim, aquele que ficava sempre para trás. Como o escarnecíamos, meu deus! Éramos uns diabretes. Quando alguém perguntava por ele, lembras-te, estás recordado do que dizíamos? «O Ontem ficou no calendário!» Era uma paródia. O pobre, sempre resignado, comendo os restos. A pouco e pouco fomo-nos desligando dele, eu quase o esqueci, até Ontem. Vês, tudo bate certo. Ontem recebi um postal do Ontem. Continua fora de tempo, sempre a viver para trás. Não, por favor, não te rias, o assunto é sério, e eu escusava ter feito este comentário juvenil idiota.
Diz ele que está velho, dorido, gordo de tanto enfardar com tudo o que nós vamos deixando pelo caminho. Diz que eu sou inconsequente por te seguir, ou anteceder, cegamente, como se tu, Amanhã, fosses imortal. De princípio achei que a velhice lhe trouxera também a senilidade, a repulsa pelo progresso, um tanto ao jeito do velho do Restelo. Mas depois, de noite, na minha cama, enquanto esperava pela tua chegada, fui assaltado por certas dúvidas, temores que nunca me tinham passado pela cabeça.
É que, no postal, o Ontem desafiou-me, desafiou a minha crença em ti. E olha que me assustou. Sabes o que me disse? Que tu não passas de uma farsa. Vê-me bem a ousadia do tipo! Liguei-lhe. Isso mesmo. Liguei-lhe e convidei-o para tomar um copo, para conversarmos, quis esclarecer o assunto, talvez dar-lhe um conselho, sugerir um psiquiatra, quem sabe. Nada feito. Chamou-me nulidade flutuante e propenso a acabar em lado nenhum. Pedi-lhe que se explicasse melhor. Sabes o que me respondeu? Que eu sou uma ponte para nenhures. Que ele é uma margem, eu um pedaço de ferro frouxo que todos espezinham desnorteados, e tu…, bem, tu não és senão o delírio máximo da vaidade, não és senão as cores aos olhos de um cego. Que atrevido!
Mas, de qualquer forma, em nome dos velhos tempos, em nome de todos os Ontem, meu caro Amanhã, faço o que lhe prometi: escrevo-te. Assim é. O nosso amigo pediu-me que te contactasse para tirar todas as dúvidas. As dele, não minhas, atenção, que eu acredito. Pois aqui estou. Preciso de uma prova da tua existência para lhe esfregar na cara.
Enquanto espero pela tua resposta, sento-me aqui, nesta esplanada, olhando com confiança as pessoas que passam em direcção ao futuro.

O sempre teu, Hoje.
publicado por floreca às 20:10
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De adelina a 24 de Junho de 2004 às 23:32
Parabéns por todos os escritos deste blogue, são telas pintadas com palavras. Visita o meu blogue, vou pôr um link para este, faz o mesmo.


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