Escrevo para comunicar-lhe que o actor que interpretou a sua personagem na peça e no filme onde nos cruzámos faleceu hoje.
Estava velho, doente, já não era belo como quando assomou da penumbra como o descendente de polacos brutalmente sensual de Um eléctrico chamado Desejo. Passou muito tempo, para os mortais, sabe? Longe vão os momentos em que a sua masculinidade trágica fazia estremecer de desejo os corpos femininos. Não é só para as mulheres que o tempo é cruel. Nesta Casa de Repouso onde me encontro nem sempre posso ter a luz tão fraca como gostaria. E aqui existem espelhos, tantos espelhos...Deve ser uma forma de torturar quem dá trabalho aos outros. Vale-me, de novo, o facto de poder contar com a bondade dos desconhecidos.
Claro que a Stella vem visitar-me, aos fins de semana. Parece-me cada vez mais magra e mais pálida, agora que o bebé já gatinha. Quando falo de si ela vira a cara e eu vejo que sofre
Vai dizer-me, Stanley, que nós, personagens que somos, estamos preservados dos efeitos devastadores da temporalidade. Tem toda a razão, somos imortais e o nosso envelhecimento é suave.
Na televisão desta Casa vi vários filmes protagonizados por Marlon Brando. A voz dele...Quando a ele falava ou gritava, as mulheres calavam-se na sala de estar. Mesmo aquelas que não estavam a seguir os filmes. Ficavam estáticas, olhando aquela face, escutando aquelas entoações de homem com o lado de menino, ou de animal, prestes a saltar. Acho que foi isso que encantou tantas fêmeas durante a sua carreira a criança e a fera que se aproximavam...
Quando o vi interpretar o velho Padrinho fiquei chocada. A fala estava diferente...ele estava tão pesado, tão dilacerado com a morte do Corleone filho...E quando assisti à morte do Don no jardim, sozinho com o neto, arrepiei-me de horror.
Onde estava o macho que incorporou a sua personagem, Stanley?
Aquele que fazia a moto chiar de paixão ou raiva?
O estivador de Há lodo no cais?
O paladino dos nativos americanos?
O guerreiro de Apocalypse Now?
Sabe, Stanley, antes de ver Marlon Brando na tela eu vira muito cinema em Nova Orleães. Apaixonara-me por Clark Gable e Errol Flynn, claro. Mas Brando era diferente, representava com o corpo todo. E naquela esfinge pulsava toda a alma de um homem.
Olhávamo-lo e tínhamos todos os mistérios masculinos diante de nós.
Era diferente de James Dean, o Jimmy era mais doce e morreu tão jovem que nunca consegui dissociá-lo da adolescência. Sabe como sempre fui sensível ao charme dos rapazes muito novos...mas talvez essa dimensão juvenil tenha sido inibidora de poder apreciar a sua virilidade.
Um homem com barba que cresce lentamente e que nos pica, um homem em cujos braços nos apetece gemer, um homem cujo hálito queremos sentir nos nossos lábios.
Stanley, por favor, neste momento de partida, junte a sua mágoa, orfã, à minha tristeza.
Ficar-lhe-ia grata se me fizesse uma visita, estou tão só.
Um beijo,
Sua, Blanche Du Bois
"PS à carta da Dora... Foste um sonho, uma estrela. Eu fui todas as mulheres que morreram nos teus braços nas aventuras de celulóide. Fui uma estrela, em todas as vezes que o teu talento se cruzou comigo.
atuaLolita"